Capa do Jornal O Globo. Foto/Reprodução
Por Gláucio Tavares*
Em 31/03/1964, um grupo de militares, sob a justificativa de uma revolução, editou o Ato Institucional n° 1, cujo preâmbulo preconizava:
“CONSIDERANDO que a Revolução Brasileira de 31 de março de 1964 teve, conforme decorre dos Atos com os quais se institucionalizou, fundamentos e propósitos que visavam a dar ao País um regime que, atendendo às exigências de um sistema jurídico e político, assegurasse autêntica ordem democrática, baseada na liberdade, no respeito à dignidade da pessoa humana, no combate à subversão e às ideologias contrárias às tradições de nosso povo, na luta contra a corrupção, buscando, deste modo, "os. meios indispensáveis à obra de reconstrução econômica, financeira, política e moral do Brasil, de maneira a poder enfrentar, de modo direito e imediato, os graves e urgentes problemas de que depende a restauração da ordem interna e do prestígio internacional da nossa pátria."
Não tardou e a mencionada “revolução” da autêntica ordem democrática, baseada na liberdade, em 13/12/1968, portanto, há 54 anos, decretou o AI-5, o denominado Ato Institucional n° 5, cujo conteúdo estabelecia:
1) o presidente poderá decretar o recesso do Congresso Nacional;
2) Poder Executivo ficava autorizado a legislar;
3) intervenção nos Estados e Municípios (governos biônicos);
4) suspender os direitos políticos de quaisquer cidadãos pelo prazo de 10 anos e cassar mandatos eletivos federais, estaduais e municipais;
5) suspensão das garantias constitucionais ou legais de: vitaliciedade, inamovibilidade e estabilidade, bem como a de exercício em funções por prazo certo;
6) decretar o estado de sítio e prorrogá-lo;
7) suspender a garantia de habeas corpus.
O AI-5 representou o ato mais soberbo do autoritarismo na recente história política brasileira e com sua feição escandalosamente fascista, sustentou um governo de repressão e violência contras as liberdades dos cidadãos brasileiros.
A perseguição política foi estatizada, com desaparecimento de compatriotas e torturas contra os opositores do regime militar. A imprensa foi amordaçada, sem poder publicizar os inúmeros casos de corrupção e impunidade capitaneados pelos mui amigos do regime. Com isso, a sujeira da nação era estocada embaixo dos tapetes dos militares por força das baionetas.
No Rio Grande do Norte, o popularíssimo Aluízio Alves teve seus direitos políticos cassados, enquanto o ex-senador José Agripino Maia foi alçado a prefeito biônico de Natal por força do AI-5.
Noutro giro, o Poder Judiciário, com a suspensão da garantia do habeas corpus, foi impedida de reconhecer as inúmeras prisões ilegais feitas pelos militares de pessoas que tinham coragem de se opor ao regime autoritário. Nesse ínterim, a tortura tornou-se uma prática do Estado brasileiro.
Compete registrar, para fins de ilustrar os efeitos práticos da verve aberta pelo Ato Institucional n° 5, um episódio absolutamente lamentável descrito no Livro Crimes da ditadura militar / 2ª Câmara de Coordenação e Revisão, Criminal. – Brasília: MPF, 2017. (fls. 82/83).
Num dos sinistros casos de prática de torturas utilizada pelo regime militar brasileiro de 1964, relata-se a implicação direta dos oficiais Rubens Paim Sampaio (“Dr. Teixeira”) e Freddie Perdigão Pereira (“Dr. Roberto”). Segundo uma testemunha:
“Dr. Roberto, um dos mais brutais torturadores, arrastou me pelo chão, segurando-me pelos cabelos. Depois, tentou estrangular-me e só me largou quando perdi os sentidos. Esbofetearam-me e deram-me pancadas na cabeça. Colocavam-me completamente nua, de madrugada, no cimento molhado, quando a temperatura estava baixíssima. Petrópolis é intensamente fria na época em que lá estive (oito de maio a onze de agosto). Fui várias vezes espancada e levava choques elétricos na cabeça, nos pés, nas mãos e nos seios. Nesta época, Dr. Roberto me disse que eles não queriam mais informação alguma: estavam praticando o mais puro sadismo, pois eu já fora condenada à morte e que ele, Dr. Roberto, decidira que ela seria a mais lenta e cruel possível, tal o ódio que sentia pelos ‘terroristas’. […]
Alguns dias após submetida a verdadeiro horror, apareceu o Dr. Teixeira, oferecendo-me uma saída ‘humana’: o suicídio. Disse-me que eu tinha sido condenada à morte, mas ao invés de uma morte lenta nas mãos do Dr. Roberto, eu poderia dar cabo da minha vida. Aceitei e pedi um revólver, pois já não suportava mais. Entretanto, Dr. Teixeira queria que o meu suicídio fosse público. Propôs-me então que eu me atirasse debaixo de um ônibus como já fizera. [...]
Por não ter me matado, fui violentamente castigada: uma semana de choques elétricos, banhos gelados de madrugada, ‘telefones’, palmatórias. Espancaram-me no rosto, até ficar desfigurada. A qualquer hora do dia ou da noite, sofria agressões físicas e morais. ‘Márcio’ invadia minha cela para ‘examinar’ meu ânus e verificar se ‘Camarão’ havia praticado sodomia comigo. Este mesmo ‘Márcio’ obrigou-me a segurar seu pênis enquanto se contorcia obscenamente. Durante este período, fui estuprada duas vezes por Camarão e era obrigada a limpar a cozinha completamente nua, ouvindo gracejos e obscenidades, os mais grosseiros.” (Possível baixar gratuitamente no link: http://memorial.mpf.mp.br/nacional/vitrine-virtual/publicacoes/crimes-da-ditadura-militar)
A ditadura militar e o seu ato jurídico mais horrendo, o AI-5, que completará 54 anos neste próximo dia 13/12/2022, não devem ser esquecidos, haja vista que esse horror da História do Brasil precisa ser conhecido por todos para jamais ser repetido.
*Gláucio Tavares é analista judiciário do TJRN, mestrando em Direito pela Universidad Europea del Atlántico, graduado em Farmácia pela UFRN e ativista político pela democracia.
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